GOMAS AÇUCARADAS

GOMAS AÇUCARADAS

sexta-feira, 26 de outubro de 2012


Dia das Crianças

 

O dia das crianças começou com o sol brincando na rua. O barulho das portas de aço sendo içadas por um ferrolho a despertou. E arrastando os miúdos da sombra da marquise, um agarrado ao peito e outro com o esqueleto estalando no chão duro, foram aquecer-se sob o sol.

Enquanto o menor sugava a mãe, o outro, de pé, observava a movimentação do comércio. Já sabia que era dia das crianças. Por dias ouvia os carros de som que passavam anunciando a data especial, via outras crianças saindo felizes das lojas com seus pais e volumosos pacotes de presentes. Distraiu-se com o gordo comerciante do outro lado da rua colocando para fora da loja a caixa de som que desde que saíram de casa sob as ameaças do pai bêbado, tocava a mesma música.

De repente a rua estava cheia de movimento. A mãe encolhera as pernas para não atrapalhar os passantes e estendera o lenço como salvas. De vez em quando uma moeda caía sobre o lenço encardido.

- Menino, não vá longe – a voz fraca, em jejum.

- Mamãe, quando o papai vem buscar a gente? Ele não está demorando?

- Seu pai não vem mais, agora vamos viver aqui até um anjo nos arrumar um lugar para ficar – e pousou uma das mãos sobre o maxilar que, apesar de todo o tempo passado, ainda doía como se estivesse apanhado ontem.

O menor dormia nos braços da mãe, alimentado.

- Mamãe, quero ir para casa! - e esboçou um choro truncado pela realidade.

- Não comece. A gente não pode voltar lá. Seu pai mata a gente! Vai brincar, vai! Quando juntar mais algum dinheiro, compro um copo de leite.

O menino então se voltou para o meio fio da calçada procurando pelo chão algum objeto que o divertisse. Encontrou uma bolinha de papel e começou a chutá-la. O comerciante anunciava a queima do estoque de brinquedos naquele último dia de oferta, afinal já era dia das crianças.

- Um dia vou ter uma bola de verdade, mamãe?

- Quem sabe um dia um anjo não lhe dê uma de presente – disse desconcertada.

O menino suspendeu o chute no ar, franziu a testa, arregalou os olhos famintos.

- Mãe, o que é anjo?

A mulher riu. Como explicaria ao filho de três anos o que era um anjo? Arriscou-se.

- Anjo, é um homem de asas que vem do céu.

Depois de algumas horas o menino ganhou um copo de leite e um pão, tomados na padaria. A mãe retornou com os meninos sob a marquise. O sol guardava seus brinquedos. O comércio cerrava suas portas. Um cachorro abandonado do meio da rua observava a mulher e os filhos. E então uma perua velha aproximou-se devagar. O menino já estava encostado na pedra morna da parede, sentado ao chão, quando viu o veículo. Não era carro novo. A perua estava toda remendada, o para-choque amarrado com arames e tiras de tecidos. O escapamento soltava uma fumaça negra e espessa. O motor estalava em soluços.

A perua foi estacionada diante do menino, do outro lado da calçada. Um homem desceu. Vestia uma calça surrada e uma camisa, de tão desgastada dava para ver o corpo. A sandália de couro surrada arrastava no chão fazendo barulho. O homem tinha dificuldade para andar. O menino observava tudo isso e nem notara que o velho trazia um pacote colorido em uma das mãos. E uma bola de plástico multicolorido na outra.

Quando se deu conta, o menino estava com a bola sob o braço. E sua mãe desembrulhava o pacote onde havia outros brinquedos. De repente a mãe encontrou um saquinho plástico com duas caixas laminadas cheias de comida. Ao levantar a cabeça para agradecer ao homem, já não estava mais ali.

- Este homem é um anjo! – disse a mãe, aliviada.

E o miúdo, lembrando-se do que a mãe lhe ensinara, olhou para o céu procurando os vestígios. Nem uma pena havia se soltado. Então se virou para a rua e pôde ver a perua engazopando, soltando fumaça, até que sumiu na esquina. E quando não se ouvia mais os estalos do motor...

- Mamãe, porque não pediu uma casa para ele?

 

 

 

O SORRISO BOBO

 

A desgraça deixa compaixão por onde passa. E não precisa ser gigantesca para nos arrebatar de piedade.

Dias desses fui intimado para uma audiência. Tentativa de conciliação. Um casal havia proposto ação de modificação de guarda contra meu cliente. O casal eram tios da criança. O pai, meu cliente, estava preso por assalto, latrocínio e mais uma infinidade de outros maus feitos. Por conta da prisão fui nomeado curador especial para defender seus interesses.

Todos estavam no Fórum. O casal com a criança e a advogada que os representava. Estava sozinho e já perdia a esperança de que o requerido viesse, quando o camburão encostou. Escolta armada. O homem era violento, muitos crimes nas costas, diziam. Folha corrida comprida feito papel higiênico. Transferiram-no para cadeia do Fórum até que o juiz determinou se instalasse a audiência.

Estávamos sentados ao redor da mesa quando meu cliente entrou na sala, puxado pelo braço por um guarda impaciente, enquanto o outro o acompanhava os passos com a mão sobre o coldre.

O homem estava algemado. E os pés acorrentados de modo que andava arrastando os chinelos. Vinha de uniforme laranja do presídio e um sorriso bobo. Os olhos faiscavam de felicidade. A menina desvencilhou-se dos braços da tia e correu para o lado do preso que balançava seus guizos.

Enquanto a menina corria, notei que o preso tinha o dente da frente quebrado, meio de quina, o que lhe dava uma expressão abobalhada.

O homem finalmente sentou-se ao meu lado com a filhinha entre as pernas. Cumprimentou-me com o mesmo sorriso ingênuo que abriu ao ver a filha correr em sua direção. Depois cumprimentou a irmã e o cunhado; e por fim, a advogada.

O juiz o interrompeu para esclarecer o porquê havia determinado sua presença. O preso concordava com o que o juiz lhe falava e notei que estava sinceramente feliz por estar ali. O magistrado então mandou o escrevente redigir o termo e retirou-se da sala. Os guardas relaxaram a postura. Um deles, inclusive, debruçou-se sobre os cancelos que separava o juiz dos jurisdicionados, observando o preso brincando com sua filha, que curiosa perguntava por que o papai estava com aquelas pulseiras.

O escrivão, percebendo a ternura do momento, deixou-se demorar um pouco mais na redação do termo de audiência. O preso concordava em transferir a guarda da filha para a irmã e o cunhado.

- E a mãe da menina? – perguntei-lhe.

- Sumiu doutor. Abandonou a menina comigo ainda bebê, e caiu no mundo. Coisa mais triste, né, doutor; a mãe abandonar a própria filha – e abriu aquele sorriso bobo, fixando em mim o olhar puro dos cães de rua.

Assinamos o termo e os guardas voltaram a arrastar meu cliente para a cela. Mas antes de deixar a sala, com o mesmo riso nos olhos, agradeceu:

- Obrigado por me dar este momento feliz.

Aquela tarde, saí mais leve do Fórum. E por muitos anos vou me lembrar do sorriso bobo daquele homem, do olhar puro e inocente como o dos cachorros. E esta lembrança me ajudará a manter a fé na humanidade.