GOMAS AÇUCARADAS

GOMAS AÇUCARADAS

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A GATA

O casal empolgado na hora do amorzinho da madrugada.
- Mia! – ordenou o rapaz no silêncio da escuridão, tão alto que fez tremer o bloquinho de apartamentos.
- Mia! – a voz pedregosa despertou o sono tranquilo dos velhinhos. E seguiu o choro assustado de um bebê no andar de baixo.
- Mia, gata! – a ordem se repetia de um lado do apartamento, ora de outro, seguido sempre do miado tímido da moça.
Depois, ligado um chuveiro, cessou o miado.
Na manhã seguinte, ao abrir a porta do apartamento rumo ao trabalho, a moça encontrou na soleira da porta uma vasilha com leite e um punhado de ração deixado numa latinha.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

PENSÃO ALIMENTÍCIA

No escritório a mulher desabafa:
- Aquele desgraçado, doutor, bandido, está devendo pensão alimentícia vai mais de ano. Jéssica tira a mão daí!
Enquanto a mulher recupera as canetas do advogado das mãos da filha, o advogado esforça-se para prestar atenção ao relato. A menina começa a chorar.
- Quero aquele bandido preso. Neste país, sei: só quem deve pensão vai pra cadeia.
- Podemos tentar um acordo... – tenta contemporizar o profissional.
- Não, doutor. Quero ir até o fim. Onde já se viu. Não pagar nunca a pensão. Cala a boca, Jéssica. Não quero ouvir um pio.
O advogado colhe alguns dados, faz alguns apontamentos. A menina, finalmente, aquieta-se com um papel e uma caneta. Começa a rabiscar deitada no chão.
- O processo vai levar alguns meses. A senhora terá que ter paciência...
- Eu tenho doutor, só quero que aquele desgraçado pague o que é de direito. Só isso, doutor.
-  ...mas ele, o pai da criança, terá que pagar todas as atrasadas e as pensões que vencerem no transcorrer do processo. A senhora não vai perder nada.
Colhida a assinatura na procuração. Despede-se.
O advogado trabalha meses no caso. O pai da criança, esperto, muda de endereço para não ser encontrado nunca. A mãe, ansiosa, quase diariamente quer saber do caso.
- Doutor, o oficial de justiça encontrou o desgraçado?
- Ele assinou o papel, doutor? O desgraçado vai dizer que não sabe assinar.
- A menina passa vontade, doutor!
- Calma – diz o advogado paciente. Citado, tem prazo para pagar. Se não pagar e não comprovar a impossibilidade, vai preso.
Passa alguns meses. Negada a justificativa do executado foi decretada sua prisão.  Muitos telefonemas e explicações para a mulher.
- Como demora, doutor?
- Ele não vai preso, não?
- Falaram lá no bairro que ele é assim com os polícia. Ninguém vai prender ele não.
- O desgraçado, vai ver. Vai pagar tudo na cadeia. Deixar a menina passando fome desse jeito.
O advogado recebe a notícia de que finalmente o executado foi preso. Envolveu-se em uma briga no bar. Puxaram a ficha. Tinha ordem de prisão. Ficou preso.
Dois dias e o pai da criança foi solto. O advogado viu no processo os comprovantes de pagamento do débito. A mulher sumiu do escritório. Nunca mais deu notícia. “O desgraçado quando se viu preso, arrumou dinheiro e pagou. Só assim mesmo” – pensa o advogado.
Num final de tarde o advogado encontra, por acaso, a mulher e a filha, pedindo nomeação de advogado no Fórum. O advogado puxa conversa:
- Trabalhão o pai da Jéssica nos deu, eim?
- É... -  disse meio sem graça, surpresa em encontrar o advogado.
- Ele pagou tudo direitinho? Porque a senhora está aqui?
Ressabiada, solta a língua devagar.
- Não doutor. Não pagou coisa nenhuma.
- Como não? Vi os recibos no processo...
- Assinei os recibos para que tirasse ele da cadeia.
- E porque fez isso, se não recebeu...
- Ah, doutor, ele é o pai da minha filha. Homem bom, honesto, trabalhador. Ficar preso com bandido? E quando vi preso, doutor, feito um passarinho na gaiola, magricelinho como ele só, não dei conta. Assinei logo o recibo como se tivesse me pagado.
- E o que a senhora faz aqui no Fórum novamente?
- Vim atrás de outro advogado. O desgraçado não pagou nem um tantinho de pensão. A menina e a gente com tanta precisão. Mas agora, doutor,  quero aquele desgraçado preso...

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

DÓ?!

Acorda com a gritaria dos pardais e a gargalhada do quero-quero. No banheiro escova os dentes e lava o rosto. Apanha a mochila sobre a cômoda. O beijo na mulher que ainda dorme. O afago na cabeça do filho no berço.
Na varanda o gato ronrona em sua perna. Antes de sair com a motocicleta depenada, acaricia a pelagem.
Na mochila o três oitão e o capuz. Se precisar atira no desgraçado, sem dó.    

sexta-feira, 22 de julho de 2011

TUDO QUASE NA VIDA DO HOMEM


Como Zé não conseguiu aquele emprego na prefeitura foi tratar de tentar a aposentadoria – pois, velho, acreditava somar tempo.
Saiu cedo de casa. Madrugada. Pegou ônibus lotado. Desceu perto do instituto de previdência. No resto do caminho fez uma fezinha na lotérica que pegou abrindo. No jogo passado fez quatro pontos. Por pouco não ganhou.
No instituto, a fila de trinta metros.
- Depois tomo um pingado! – falou consigo mesmo vendo a padaria do outro lado da rua.
A funcionária gorda e mal humorada veio pela fila distribuindo ficha de atendimento.
- A agência só atende 50 pessoas por dia.
Entregou ao negão à sua frente, com a perna fodida, a última senha.
José trouxe aos lábios o sorriso bobo da decepção. Não foi desta vez, pensou. “Mas vou tomar o pingado”.
Atravessava na faixa de pedestres. Distraiu-se com a buzina do velho pipoqueiro que fazia ponto do lado de fora do instituto de previdência.
No meio da faixa, um ônibus lotado, não viu Zé que atravessava.
  

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O TRABALHADOR E O ANJO


O homem chegou em casa e ralhou com o filho que remexia barro na rua esburacada com água do esgoto que corria a céu aberto por aquelas bandas. Há poucos dias havia retirado a criança da mãe através de uma medida liminar depois de o membro do conselho tutelar ter encontrado a criança em meio a sete pessoas, dentre as quais, estava a mãe da criança, que se reuniram naquela ocasião para fumar maconha e entornar litros de cachaça. Como era recente a presença da criança o homem ainda se adaptava às obrigações de pai: preparava comida, antes de sair, para o almoço do filho; e deixava sempre alguns litros de leite e bolacha de água e sal caso o filho passasse fome. No fim do dia, lavava-lhe as roupas e dava banho no menino. Neste dia entrou em casa logo após a criança correr para dentro, mesmo com as mãos e os joelhos sujos de barro. O homem colocou na cozinha, próximo ao fogão encardido, as ferramentas de trabalho, um embornal onde trazia a marmita com um resto de comida já fria, uma enxada, um folhão e o chapéu, que pendurou num prego colocado na parede para esta finalidade.
- Sua avó chega daqui uma semana, seu moleque! Até lá, vê se se comporta feito homem!
Estirou-se sobre o catre, sujo mesmo, vestindo os andrajos do trabalho e botinas.
-Estou cansado – suspirou. Vê se não me enche o saco!
O homem fechou os olhos lentamente, abriu a boca, soltou os braços alinhados ao corpo, expirou uma lufada curta e abrupta. Não se mexeu mais.
O menino espiou por entre as cortinas, que separava a sala do quarto, a calça puída e suja do pai e as botinas marrons que  ficaram para fora da cama. Ligou a televisão que ficava sobre uma mesinha num canto do cômodo. Assustou-se com o estrondo que  o aparelho deu ao ser ligado. Olhou mais uma vez entre as cortinas e as botinas do pai continuavam na mesma posição.  Abaixou rapidamente um botão para baixo, que sabia, diminuía o volume. E foi mudando os canais girando o maior dos botões que se destacava reinante no canto superior direito do aparelho. Girou duas ou três vezes até que a imagem de um desenho animado desbotado surgiu. O aparelho era em preto e branco.
O menino sentou-se no sofá, e aos poucos, foi deitando-se escorregando lentamente. Virado de lado, com as pernas encolhidas, apoiava a cabeça com a mão direita.  Vez e outra o menino sorria. Chegou a gargalhar em uma das peripécias do desenho. Desviava o olhar e via as botinas do pai, imóveis. Depois de um tempo, de tanto olhar, pensou ver o pai mexer as pernas. E distraiu-se com um pedaço de palha de aço fixada sobre as antenas do aparelho para que melhor fosse sintonizado. O sono veio em seguida. O menino dormiu no sofá mesmo, nem banho tomou. O short e a camisetinha que vestia estavam respingados de lama. Chovia a tempo e a rua estava num barreiro só. Como se adaptava à nova vida, longe da mãe, passava o dia na rua, em frente da casa onde observava outras crianças jogando futebol com uma bola encardida, feita de  meia. E outros dois menores que disputavam uma partida de biroca. O menino correu pela rua o dia todo. Portanto, pegou no sono facilmente.  Acordou com o estrondo de um trovão que ecoou depois que um relâmpago iluminou todo o barraco. O televisor estridulava e o menino abriu os olhos para ver na tela a imagem toda quebrada como se fosse um formigueiro.
Sentou-se no sofá. Bocejou e limpou os olhos com as costas das mãos – os dedos estavam sujos. Olhou para o quarto do pai e na escuridão definiu as botinas para fora do catre. Pulou do sofá e dirigiu-se até o quarto. Passou esbarrando pelas cortinas. A mão esquerda passeando levemente pelo beiral da cama enquanto a contornava e rumava para a própria cama posta ao lado. Subiu com dificuldade em sua cama. Tentou visualizar o rosto do pai na escuridão do quarto. “ Pai” – chamou baixinho. “ Pai” – repetiu sem resposta. Encostou a cabecinha no travesseiro. Continuou observando o pai até que viu um pequeno brilho nos olhos semicerrados e da mucosa pastosa que se alojara no canto da boca aberta. Novamente adormeceu.
Acordou com o sol queimando a telha do barraco. A luz entrava por todas as frestas. Na sala a televisão anunciava as notícias da manhã. A chuva cessara lá fora e o sol quente sugava as últimas poças formadas nos terrenos irregulares. O menino chamou pelo pai. “Pai! Papai! Tô cum fome!” – esperou a resposta. Pulou da cama, aproximando-se do pai e cutucando-lhe o braço com a ponta dos dedos chamou outra vez. “Acorda, papai! Tô cum fome!” Sem resposta dirigiu-se à sala. A repórter apresentava a previsão do tempo: muito calor e pancadas de chuvas isoladas. O menino girou o grande botão da televisão. Várias vezes até que encontrasse um desenho animado. E então foi para cozinha. Debaixo da pia havia uma caixa de leite e pacotes de bolacha. Não havia geladeira. Como não sabia manusear faca ou tesoura, levantou a ponta da caixa de leite e tentou rasgá-la no dente. Não conseguiu abri-la e logo desistiu. O pacote de bolacha era mais fácil. O plástico que o envolvia era mais fino e sempre tinha uma linguetinha onde enroscar o dente e puxar. A caixa não tinha, não. Depois de comer duas bolachas sentou-se no sofá de frente a televisão com a caixa de leite no colo. Enquanto assistia ao desenho roeu um dos cantos da caixa até perfurá-la e dali mamou o leite que vertia devagar, enrolando os cabelos com uma das mãos e os olhos vidrados na animação dos desenhos.
Verteu pouco menos que um terço da caixa de leite. Com olhos na televisão colocou a caixinha no chão de cimento. Levantou-se devagar e voltou-se ao quarto onde estava seu pai.
- Papai, quero fazer cocô! – apoiou as mãozinhas nos braços estirados do homem com as carnes frias à sua frente. Papai?! Virou-se emburrado e saiu do quarto. Geminada à cozinha, separada por uma porta improvisava com ripas, lascas de madeiras e restos de latas abertas e amassadas, estava o banheiro. Pouco mais que um metro quadrado, a latrina ficava quase que embaixo de um chuveiro de lata adaptada em um balde que era suspensa por uma roldana e corda até à altura de um adulto. O menino arriou o calção encardido e agachado evacuou. Olhava as paredes caiadas do banheiro. O piso áspero de cimento. O buraco no chão onde caíam os dejetos. No canto, a água parada providenciava o bolor da parede. Esvaziado, o menino levantou-se, abrupto, suspendendo o calção arriado até às canelas, sem se limpar.
Voltou para o quarto onde estava o pai. Uma pequena fresta na janela por onde um feixe de luz solar passava servia-lhe para espiar a rua. Outros meninos já tomavam conta da rua. Alguns corriam alegres pulando os restos de poças que a chuva formara, e que, agora, o sol secava. Outros jogavam biroca observados por outro, que mais distante, soltava pipa feita em jornal e hastes de bambu. A rua ganhava a vida matinal enquanto o menino, na penumbra do quarto, acompanhava o movimento. Logo enjoou. Virou-se sentado na cama. Uma lagartixa cortou a parede do quarto às pressas. Lembrou-se do que aprendera com o pai. “ Se você cortar o rabo da lagartixa, nasce outro no lugar”. Pensara na lagartixa sem rabo, correndo suspendendo as patas traseiras como o cachorro amarelo machucado que bandeava pelas redondezas da casa onde viveu com sua mãe. Sorriu, olhando para a lagartixa assustada. “Papai, olha o bicho! Papai, vamos brincar?” Deitou-se sobre a cama, olhando  o teto, logo a lagartixa escondeu-se. Ouvia a algazarra na rua. Distante, um caminhão passava. O barulho dos freios a ar chamou-lhe a atenção. O menino imitava-o com os lábios. As mãozinhas seguravam um volante imaginário. E então voltou a adormecer.
Passava do meio-dia quando o menino acordou. Ágil, pulou da cama rumando-se para a porta da sala que dava acesso à rua, mas estava trancada por dentro e a chave sequer lhe passava pela cabeça onde poderia estar. Então foi para a cozinha onde uma porta franqueava-lhe o quintal lamacento; mas estava fechado com uma tramela pesada, encaixada em alças de ferro fixadas à parede. Olhou pelas frestas da porta a imensidão do quintal. Após a chuva, o sol forte trazia vida ao quintal. Passarinhos pousavam para beber água e banhar-se nas poças que logo secariam. Borboletas amarelas passavam unidas a outras num vai e vem aleatório. Retornou ao quarto passando pela caixa de leite que derrubara na noite anterior. O líquido vazara da caixa e escorrera para debaixo do sofá onde o menino se deitava para ver televisão. Nem percebeu o cheiro azedo que o leite coalhado exalava. Aproximou-se do pai convidando-o para sair.
- Papai, vamos brincar lá fora! Parou a chuva.”
Fitou os olhos semicerrados do pai, a boca entreaberta e silenciosa. Do nariz e ouvidos vazavam rubro e espesso os sinais da morte. O menino continuava a tagarelar, ansioso para que o pai levantasse abrupto e, fazendo-lhe cócegas, dissesse:
- Bum! Te peguei, vamos brincar lá fora! Cadê a bola de meia. Pega a bola de meia, fio, vamo jogá!
- Papai, eu vi um monte de borboleta lá fora! Vamo pegá borboleta, papai? Eu gosto mais de ficar aqui com você. Na casa da mãe não pode brincá! Papai, acorda. Papai?! – chamou pela última vez, arfando. Deitou-se ao lado do pai, cruzou os bracinhos. Olhava o teto, a trama de madeira irregular, o telhado de zinco, uma lata e outra fazendo a vez de telha atendendo ao reparo. O calor forte fez o menino transpirar. Ficou ao lado do pai distraindo-se com a trama do telhado. Sentiu sede, mas não pediu ao pai – sabia que não adiantaria – o pai estava muito cansado, precisava dormir. Levantou-se, pulou por sobre o corpo do pai e caiu ao chão. Dirigiu-se devagar para a cozinha. E então um cheiro azedo o incomodou. Arrastou uma cadeira até a pia da cozinha. Subiu sobre a mesa. E como vira o pai fazer outras vezes, encostando a boca na torneira virou a borboleta sobre ela fazendo com que água pura e fresca saísse. Bebeu grandes e rápidos goles na tentativa de acompanhar a vazão da água. Prendeu a respiração a ponto dos olhos lacrimejarem. E então, não podendo mais, sem fôlego e barriga cheia, livrou-se da torneira e respirou exacerbado. Um fedor repugnante o fez enojar-se. Sobre a pia, restos da marmita do pai eram atacados por larvas brancas, aos montes, que dançavam enroscando entre si, como no prato de macarrão que sua mãe costumava, nos domingos, obrigá-lo a comer quando só queria era correr por um campinho improvisado no meio da rua, atrás de uma bola encardida confeccionada com meias velhas. Sentiu imediata repulsa. Desceu da cadeira lentamente e dirigiu-se ao quarto onde o pai estava.  No caminho, passou pela sala, e o fedor azedo coalhado impregnou-se com a fétida marmita, fazendo com que o menino tivesse dificuldade para respirar sem provocar-lhe ânsia de vômito; mesmo porque, no quarto a podridão já atraía enormes pássaros negros que pousavam sobre a casa.
Permaneceu deitado ao lado do pai. Sentiu-se fraco. Há muito não comia. Fez força para não mexer qualquer parte de seu corpo, não tinha vontade e uma força estranha o impedia de mover-se. Os olhos abertos continuavam observando a trama do telhado. E ouvia a algazarra que os grandes pássaros faziam sobre a casa. Não era mais a chuva, nem os meninos correndo atrás de bola que lhe chamava a atenção.  A medida que o tempo passava, mais dificuldade sentia em respirar. Tocou a pele fria do pai e por um momento segurou seu antebraço – rijo e gélido. Os olhos, aos poucos, foram anuveandos. Lágrimas escorriam pelas bochechas pálidas. O ar faltava-lhe nas narinas. O diafragma não mais conseguia baixar permitindo que o oxigênio ganhasse os pulmões. Ouvia a gritaria das gralhas, a ranhura sobre o telhado cinza. Os olhos turvos. A boca seca não permitia dirigir-se ao pai. Nem tinha vontade. Fechou os olhos à medida que o ar ficava mais rarefeito. As gralhas alvoroçavam lá fora. Asas batendo em verdadeiro reboliço. Ouviu uma mulher chamar à porta. Lembrou-se da avó. Mas em meio às lembranças e a balburdia sobre a casa, não mais sabia o que era real e o que era fantasia. O menino fechou os olhos e sequer os abriram quando ouviu um homem gritando, dizendo que iria estourar a porta. E por muitos anos recordava o momento do estrondo que a velha porta de madeira e latas fez ao cair, do choro da avó, igualmente estrondoso, debruçada sobre seu pai e das luzes mágicas que rodeavam sua casa quando nos braços de um homem o levaram para fora.
Pira, 23/01/2010.         

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O HOMEM DA COBRA


Maria estendia na sacada do sobrado os três colchões mijados de seus filhos. Um galo preguiçoso anunciava tarde o novo dia posto que o sol já queimava o coco dos poucos transeuntes que andavam pela vila. O apito do trem avisava os passageiros de sua aproximação. Ouvia-se o barulho das portas de aço da mercearia que eram elevadas com estrondo. Crianças eram arrastadas por suas mães até o grupo escolar. Senhorinhas, com passos calmos e despreocupados, compravam pães quentes para seus maridos na padaria do Odel, o libanês. Um velho Ford corcel, puxando pelo rabicho uma grande caixa metálica, encostou à beira do meio fio. Todas as luzes refletiam na caixa cegando os curiosos. De longe, um cavalo arredio, retrocedeu três passos quase tombando a charrete. A matilha que cortejava uma cadela no cio se desfez com a chegada luminosa do carro velho e enferrujado. João celeiro olhou desconfiado o rapazola que conduzia o veículo assim que suspendeu a porta metálica da selaria e topou com aquele troço à sua porta. Genésio enchia o carrinho de picolés para mais tarde servir no grupo quando a roda daquela caixa passou lambendo seus calcanhares. Quando virou, foi um susto. Tião, dono da papelaria, gritou para o fundo da casa o nome da mulher. Nena, vem vê uma coisa! E com ela os dois casais de filhos, em escadinha, apareceram à porta do bazar.
 O rapazola com o pequeno cavanhaque desceu do corcel, soltou duas grandes fivelas que abraçavam a grande caixa metálica e abriu o tampo. Lúcio, que trazia uma promissória na mão e uma caneta na orelha, deteve-se diante da caixa. Saíra decidido do armazém a cobrar a cártula. Mas o homem com a enorme caixa metálica o impediu. Parou abrupto o passo. Cruzou os braços e mordeu o dedo indicador atravessado na boca. Elza vinha com passos firmes e rápidos esquecida do destino. Caixa de isopor a tiracolo, ela trazia a injeção de insulina diária que aplicava em Onofre, o dono do bar. Perguntou ao Lúcio o que era aquilo que logo respondeu tratar-se de magia. O Joaquim açougueiro largou a chaira e a faca afiada e atravessou a avenida com o jaleco respingado de sangue. Um grupo de estudantes ficou pelo caminho, mochilas presas às costas.
O estrondo que a enorme tampa metálica fez ao cair, fez Elvira largar a roupa no tanque e correr para a porta da venda, onde seu pai sentando à porta exibia as pernas sendo comidas pelo fogo selvagem, apoiadas em outra cadeira. O que houve, pai? – perguntou Elvira saindo à porta, secando as mãos no avental, no momento em que João, seu irmão, exibindo dentes de ouro no sorriso, trazia a informação. O homem traz uma cobra enorme na caixa. Julinho cortava a avenida em passos rápidos e cegos que conduzia, ziguezagueando, à porta do Firmino português, a tirar-lhe satisfações por conta de uma briga em que seus filhos tiveram no grupo escolar no dia anterior, e que seu filho acabou levando a pior. Floriano deixara pela metade a barba de Waldemar Rolinha ao saírem, curiosos, assim que o rapazola botou a boca no trombone. Com um amplificador de som convidava toda a comunidade para conhecer aquela revolução da medicina, o elixir da juventude, a cura para todos os males, o fim de todas as dores. E limpando a garganta, sonoramente anunciava: o óleo do olho do peixe do Telêmaco. E mostrava um vidrinho onde aquela porção mágica trazia todas as soluções para qualquer problema.
- Se você está velho e as cadeiras não mais te agüentam! O óleo do olho do peixe é a solução. Basta besuntar o óleo pelas ancas e a dor sairá esquecendo-se de você para sempre. E não é só. Seu filho ainda mija na cama. Basta esfregar o óleo do olho do peixe no pipi de seu filho. E eu dou minha mão à palmatória que nunca mais fará xixi na cama.
Ricardo que assistia a tudo, olhos miúdos vidrados na enguia, cochichou a seu irmão.
- Vamos pedir dinheiro ao pai, assim vocês param de mijar na cama – e atravessaram a rua correndo, quase pisando sobre a cadela Rebeca, deitada à porta do açougue. Ao retornarem, dinheiro enrolado na mão, foi logo pedindo um frasco. Telêmaco, aproveitando a oportunidade da venda foi logo dizendo:
- Este menino nunca mais vai mijar na cama!
Um garoto que estava observando tudo sentado no selim da bicicleta perguntou com maldade:
- É para você, Zé? Parar de mijar? – e apontou os colchões expostos na sacada do sobrado, secando ao sol.
- Não! – respondeu sem graça Ricardo –É meu pai, tá com dor nos ombros – e correu para dentro de casa feliz com o emplasto. E desta vez a cadela o acompanhou.
E Telêmaco anunciava os benefícios do óleo do olho do peixe.
-Se você sofre de reumatismo – e apontava o dedo a um senhor, vestido com chapéu branco, que observava quieto todo aquele falatório – basta passar o óleo no lugar da dor e esfregar. Nunca mais sofrerá de reumatismo.
De repente o rapazola se dirigia ao Paulinho, filho do Onofre, o dono do bar, que chegava à tertúlia com passos lentos e ofegantes pela banha que se alojava em seu abdômen e agora escorria para os membros.
- Se você comeu alguma coisa que não lhe caiu bem? Bastam três gotas do óleo do olho do peixe em meio copo d`água e a azia é tirada com a mão.
E as notas iam passando de mão em mão até chegarem às mãos de Telêmaco que de imediato remetia um vidrinho milagroso, que de mão em mão, retornava a quem enviava o dinheiro. E o remédio curava tudo e a todos.
- Se você é vesgo. Tem um olho no gato e outro no peixe. Basta friccionar o óleo do olho do peixe que seus olhos entrarão em órbita. E você, meu amigo, que já não consegue mais dar no coro. Que não acha mais sua senhora atraente. Basta esfregar três vezes ao dia o óleo do olho do peixe nas genitálias que você não vai poder nem olhar perna de mesa.
O povo foi parando por ali. Lúcio esqueceu no bolso a promissória que iria cobrar, com uma caneta equilibrada sobre a orelha. Quando deu por si, o devedor havia se mudado com mala e cuia da vila. E embora especulasse entre a freguesia, ninguém sabia do paradeiro dele, pois ninguém o tinha visto jogar a mudança sobre o caminhãozinho e arredar pé dali.
O libanês planejava ir num pé e voltar no outro. Ver o que se passava ali. Mas distraiu-se e quando se deu conta, tinha comprado três vidrinhos com o remédio que o moço jurara faria sumir todo aquele gás que lhe estufava o bucho e não havia peido e arroto que o aliviasse. E de retorno à padaria encontrou a fornada do meio dia queimada e Lia, sua mulher, esperando-lhe à porta dizendo-lhe palavrões que só eles entendiam.
Genésio vendeu ali mesmo todo o sorvete que colocara no carrinho, a ajudar espantar o calor que o sol do meio dia trazia à aldeia. E também, com o lucro das vendas, comprou o vidrinho ao saber de seu poderoso efeito cicatrizador. A roda da carroça que trazia aquela grande caixa metálica cortou-lhe os calcanhares ao passar de raspão.
Uma das filhas de Onofre veio às pressas lembrar Elza da insulina que devia aplicar em seu pai, pois o homem já caíra tremendo ao chão, enrolando a língua, numa crise que o vidrinho foi capaz de afastar. Antes que chegasse com a caixa de isopor trazendo a seringa boiando na água do gelo derretido, Onofre de joelhos já partilhava os bens e confessara a paternidade de outros seis filhos com outras três mulheres. E só não foi morto naquela ocasião porque mais uma vez Elza o salvara jogando o resto da água fria sobre Jandira, apartando-a do marido como se apartavam os gatos brigando.
E Telêmaco, para finalizar as vendas, ganhando a confiança de quem ainda não comprara o óleo do olho do peixe, denunciou aos quatro ventos o grande segredo do poder reparatório daquele elixir.
- Esta cobra, não é uma cobra comum! Ela foi encontrada por meu avô num manancial ao pé de um vulcão adormecido – e arrematou arregalando os olhos e fazendo proeminente o queixo quadrado, com a barbicha – Este peixe é elétrico! Se seu rádio não funciona porque a pilha acabou, este peixe põe a tocar o seu rádio. Se a bateria de seu automóvel arriou, basta uma ligação direta com o peixe elétrico. Toda esta energia é que traz os poderes curativos deste remédio, que agora todos os senhores podem usar.
- O senhor, venha cá! Já viu um peixe assim?
- Isso é uma cobra!
 - Não! É um peixe! E o senhor já pôs a mão em um peixe assim?
- Não! Claro que não!
- Pois então, experimente!
E ao abaixar, aproximando-se da água onde a enguia assustada nadava de um lado ao outro, foi interrompido rapidamente.  O braço puxado para cima.
- Espere um pouco – disse o moço coçando a barbicha – O senhor não sofre do coração?
- Não, não sofro!
- Pois então o senhor mesmo é o responsável se algum mal lhe acontecer com a forte descarga elétrica que sofrer. E todos aqui é testemunha.
 O homem baixou a mão vagarosamente até a água quando, ao tocar na água, uma leve descarga elétrica e o chicotear do peixe o fez recolher a mão espirrando água em alguns dos presentes.
- Deixe prá lá, antes que você se machuque, vou fazer um experimento! - e segurando dois bastões de aço conectados a um fio, que por sua vez estava ligado a uma lâmpada, baixou os bastões para dentro da caixa e imediatamente a lâmpada se acendeu.
O povo ficou assombrado. Não disse que era magia! Ouviu-se num sussurro que foi seguido de manifestações de repulsa e admiração.
- Deus me livre – disse Nena benzendo-se com um terço na mão.
_ Nossa, o rapaz é mágico!
- Incrível!
- Vai arder no inferno!
Mas no geral, Telêmaco conseguiu vender mais alguns frascos ao mencionar que o poderoso elixir fazia crescer cabelo, matava verruga, sarava conjuntivite. Então colheu logo o dinheiro que chegava voando de mão em mão por sobre as cabeças dos curiosos, socou as notas de qualquer jeito nos bolsos da calça e agora já enchia os da camisa. Bateu a tampa de aço com o mesmo estrondo que fez ao abri-la. Passou um grosso cadeado para que ninguém roubasse seu peixe.
O povo ainda ao redor. E como ninguém mais compraria já que todos traziam na mão, no bolso da calça ou na sacola o vidrinho com o óleo do olho do peixe, Telêmaco entrou e deu a partida no Corcel. Tentou umas três vezes antes que pegasse. E então arrastou para outra cidade a caixa metálica. Aos poucos, a reunião se desfez. Os colchões dos filhos de Maria continuaram expostos ao sol na sacada do sobrado. Paulinho sofreu da constante azia tão logo tomou meio litro de refrigerante e comeu quatro pastéis no desjejum.  Sua mãe havia perdoado seu pai e com isso ganhou mais irmãos. Lúcio emoldurou em um quadro a nota promissória não resgatada. Julinho perdoou a surra que seu filho levou. E nem mesmo chegou a tirar satisfações com o pai do agressor, o português Firmino. Joaquim voltou para o toco a preparar os cortes de carnes, mesmo com as dores insuportáveis que sentia nos ombros. E logo pela manhã seguinte João colocou seu pai sentado na cadeira em frente à venda, as pernas esticadas apoiadas em outra cadeira. E as feridas, agora mais abertas, fritando ao sol.

Piracicaba/SP, 10 de maio de 2010.


quarta-feira, 15 de junho de 2011

GOMAS AÇUCARADAS


A cadela estava prenhe. Dormia sob a marquise de um banco. Algumas pessoas da vizinhança traziam alimento para a cachorra. Um pote de margarina com água, grãos de ração pelo chão. Alguém trouxe caixa de papelão e cobertor que serviam de leito. Passava o tempo todo deitada, os mamilos inchando de leite.
O gerente do banco não se conformou com a cachorra deitada à porta. Atrapalhava os clientes, podia morder alguém, prejudicar sua carreira. Enxotou a cadela, que saiu da caixa assustada. Tombou o pote de margarina, mandou varrer os grãos de ração.
A cadela zanzou de um lado para o outro. Ficou arisca com gente. Encontrou, nas proximidades, um bueiro aberto. Entrou. Na madrugada, a bolsa rompeu. Trabalhou até o sol despontar lambendo a cria. Cinco cães condenados à miséria.
Mas um homem viu os dois olhos brilhantes do outro lado da rua, espiando-o pelo rasgo da guia. O que era aquilo? Um bicho?
- Não, uma cadela com seus filhotinhos!  - diz o frentista apoiando na bomba de combustível.
O homem ficou maravilhado. Veja só o instinto materno. Fez do bueiro seu lar. Alardeou a vizinhança. Logo, uma pequena multidão se formou próximo ao bueiro. Trouxeram ração para a cachorra. E no costumeiro pote de margarina, puseram água. Mas a cadela não arredou pé dali. Estava assustada. E quanto mais gente se aproximava, mais se enfiava pelo interior da galeria.
Alguém avisou a imprensa. Repórteres com caneta e bloco em punho tomavam depoimentos. Logo era o prefeito que chegava no local. Carro oficial e comitiva.
- Assim que soubemos, acionamos a defesa civil.
Uma sirene rasgou a cidade. Giroflex ligado. A aglomeração aumenta. Os homens do corpo de bombeiros dispersam os curiosos. A defesa civil demarca o limite com faixas amarelas. Membros das sociedades protetoras dos animais dão entrevistas. Questionam o que vão fazer com o animal. Disputam entre si a intenção de adotar a cadela. Sugerem nomes ao bicho.
Os bombeiros tentam laçar a cadela com um enforcador. Em vão. Mandam comprar carne em algum açougue da vizinhança para atrair a cadela para fora. Um açougueiro doou um pedaço de carne. Por conta do barulho, a cachorra resiste em sair. O prefeito manda quebrar a guia da calçada, escancarar o bueiro: melhor salvar uma vida. Não houve necessidade. No fim da tarde, cansada e faminta, a cadela resolve sair para engolir um pedaço de carne crua, quase cozida no asfalto quente. Pôs o corpo para fora, o bombeiro arisco, a laçou. O público ovacionou aquela tarde heróica de trabalho. Nem perceberam o outro bombeiro que mergulhado com o tronco para dentro do bueiro, retirava com segurança os filhotes da cachorra. Agora não havia mais risco de mordidas.
As autoridades presentes se cumprimentaram. Algum morador do bairro trouxe uma caixa com travesseiros dentro para servir provisoriamente de ninho á cadela e seus filhotes. Um veterinário se ofereceu para examinar os animais. Subiram sobre o resgate do corpo de bombeiros. As autoridades tomaram seus carros. Com sirenes ligadas e piscas alertas acionadas, saíram em carreata, sob aplausos do povo.
Pegaram a rua em sentido ao centro. Na esquina, sentada ao chão, uma mulher negra estendia a mão aos transeuntes. Oferecia gomas açucaradas. Um pote de margarina vazia colhia algumas moedas. No peito murcho, uma criança se aninhava. Os olhos assustados miraram a algazarra, sem entender, enquanto com força, sugava o pouco leite que restava.
Pira, 21 de setembro de 2010.